CRIMINALIZAÇÃO DO BAR E DA BEBIDA: UMA EXPLICAÇÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA
Bar e bebida relacionam-se à liberação dos instintos, desejos sexuais, impulsos inconscientes, paixão, amor, celebração da vida, Dionísio. Ir ao bar, tomar chopinho, socializar-se, vale mais que remédios e sessões de psiquiatria. Desde a antiga Suméria, passando pelos demais impérios de antes de Cristo: babilônico, assírio, egípcio, grego, macedônico, cartaginês, romano (aC e dC) discute-se a liberação e limitação do consumo de bebidas alcoólicas e de condutas sociais. Houve épocas mais liberais e mais repressivas. O surgimento de religiões monoteístas reforçou o viés conservador e moralista.
Atualmente vivemos em tempos de mudanças civilizatórias profundas, com obstáculos reais e imaginados, difíceis, inconstantes, mutáveis, relações frágeis e dinâmicas, em que costumes padrões de conduta e  valores são descartáveis, o que, porém, nem sempre deve ser confundido com a liberação saudável de sentimentos.
A religião, antes principal esteio da ordem social, a lembrar sempre a recompensa do céu, enfraquece-se à medida que a ciência explica os fatos da existência da vida e do cosmos. O dito por Nietzsche e repetido por Sartre, Deus morreu, impregnou a sociedade, tem milhões de adeptos, sem céu ou inferno nos esperando melhor vivermos esta vida, carpe diem, ensinavam os romanos, seja feliz e aproveite cada momento.
Soma-se ainda para a instabilidade social a criminalidade violenta que cresce a cada dia, a instabilidade econômica e a corrupção das elites empresariais e políticas, o cada vez maior, o número de países com armas nucleares, a resistência de certas epidemias, o terrorismo.  A insegurança com relação ao futuro reforça um  desejo de todos: viver o aqui e agora.
A economia de mercado faz sua parte, transmudando o ser em ter. Ter é poder. A felicidade está em ter status, consumir, dominar, subir na hierarquia, andar no carro e com roupas da moda, viajar a cada ano para o exterior.
Quem pode mais sobe e… Descobre o vazio. Quem pode menos fica frustrado. Muitos que sobem e os que descem encontram saída no caminho das drogas, que espreita principalmente os jovens. Elas estão fáceis e acessíveis, substituem a complexidade da realização profissional e humana.
Nesse quadro, como não ter medo e insegurança? Como não querer ordem, organização, por parte dos mais conservadores, idosos, privilegiados, os que ainda controlam as instituições, chegam aos parlamentos e seus privilégios?
Bom mesmo é ter uma sociedade bem comportada, segura, acabar com a corrupção, a criminalidade, o tráfico de drogas. Mas, se isso é impossível, por que não agir na parte da sociedade onde ainda se tem poder?
A restrição ao consumo do chopinho ou a vida no bar, libertadora de instintos e sonhos, está na esfera de poder do Poder. Eis aí o porquê de tantas leis repressoras sobre o boteco, eis o porquê do risco que precisa ser enfrentado. Os vereadores de Xiririca da Serra nada podem fazer contra as drogas violentas a que se atiram os jovens, mas pode proibir o bar de ficar aberto à noite. E fazem questão de mostrar o quanto são poderosos, no mínimo conseguem uma nota no jornal quando o fazem, justificando a remuneração licenciosa.
Em vez do perigoso Dionísio, entra Apolo: disciplina, organização, prevenção, repressão. Apolo e Dionísio são criações gregas, mas como dito, desde as antigas civilizações já se estranhavam. No Brasil, podem ser lidos ou vistos em Dona Flor e seus Dois Maridos, de Jorge Amado (as figuras do malandro vadio, irresponsável, mas encantador Vadinho e do chato previsível, mas, responsável farmacêutico).
No entanto, é preciso sonhar, resistir, manter nossos bares e nosso direito a comemorar amizades, o chopinho, a cachaça, o amor, os instintos – até porque sem nos soltarmos de vez em quando, sem nos socializarmos, não há saúde mental possível. Sem abandonarmos o ser ao enquadramento total, desapareceremos, será a não vida. Não podemos ser e fazer tudo que nos vem à cabeça (id), mas muito menos comandados inteiramente pelo outros (superego), ambos devem ter seu momento. Ser apenas o ser da conjuntura é insuportável, até para nós mesmos; não crescemos, não superamos nossas limitações, o vazio e o tédio da rotina obrigatória de trabalho ou estudos. De vez em quando, é preciso ousar, sonhar, e tentar realizar o sonho.
Em nós e em nossa sociedade, temos que dar lugar a Apolo e Dionísio. No momento, melhor apoiar este último, pois o pessoal pró Apolo está exagerando.
 
Percival Maricato
Presidente da Abrasel SP